Se você pudesse ver os olhos de Gabriela, entusiasmada e feiticeira, enquanto toma a última dose de cerveja num boteco qualquer do centro velho, saberia que ela não é uma personagem do Bukowski, embora a defina como A mulher mais bonita da cidade. Seus olhos são claros dentro de um castanho enigmático e comedido, às vezes trazem um pouco de graça, noutrora um punhado de solidão. São através daqueles olhos que seu peito vomita as lágrimas, porque Gabriela não chora nem geme, não canta nem grita – ela apenas diz – Olá, Henrique! Estou com muito calor hoje.
De fato, isto está um inferno. Pela manhã, ouvi algumas músicas na rádio que o meu tio-avô escutava quando eu ainda não passava dos cinco ou seis anos de vida. Feito um narrador personagem da minha própria glória e fracasso, embriaguei-me ao som da Quatro Estações.
Gabriela é a mulher que mais combina com música barroca dentre todas as que eu tenho
conhecido. Ela usa vestidos floridos no calor e seu orgasmo rega as flores. A minha caligrafia combina com o tal substantivo Gabriela. E todos os bares da cidade me parecem combinar com esse vazio aparentemente inenarrável que as pessoas sentem quando chega determinada hora do dia, embora cada pessoa queira narrar seu próprio vazio em verso e prosa.
Chega o momento em que os escritórios lançam para fora seus funcionários; e todas as salas de cinema estão completas; e todos os motéis se transgridem após as vinte e uma horas; e todas as religiões se emudecem à meia noite – somente os bares, estes sim, com suas mesas de sinuca, seus docinhos de amendoim e seus frangos fritos abandonados estão ali, onde todas as pessoas podem morar por horas, dias ou décadas. Porque qualquer boteco sujo combina com todo tipo de gente.
Porque chega um tempo que os comerciais de cigarros e de cerveja começam a se interagir de forma mais agressiva com o nosso próprio fracasso. São estes os dias de auto-degradação e literatura, porque você combina muito com a solidão.E todos os homens da cidade querem (e por que não?) dormir com Gabriela; e todos os romances têm a ver com o castanho dos seus olhos; e todos os amores são conterrâneos do peito febril da mulher de grandes dotes literários e de loucura, de sorrisos mais que discretos e olhar ensurdecedor.
Todos os botecos me agradam, porque à noite os gênios despertam de suas garrafas mágicas e declamam o amor sob o hálito de muito álcool.
Cheguei ao bar no horário de sempre, por volta das nove da noite. Pela sétima ou oitava vez me deparei com Gabriela e pensei em chamá-la para jantar. Todos os homens queriam seu corpo e ela sabia muito bem disso. Eu também queria, numa espécie de segredo pré-moldado, mas queria.
Gabriela estava sentada, sorrindo, de mãos dadas a outra mulher. Sentia-se aparentemente confortável e estava um tanto bêbada. Olhou-me, sorriu-me e disse – o que você está me olhando, cara? Já não sabe que eu não acredito no amor?
Lá fora precisava de chuva. O tempo estava seco demais. Mas os seus olhos eram agora de um vermelho sombrio, e o mais curioso, é que permaneciam profundamente misteriosos e puros.
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